Decreto presidencial da semana passada autorizou atividades de mineração e construção civil em regiões de cavernas de máxima relevância
O aumento de atividades de mineração e de asfaltamento em regiões de cavernas e grutas, autorizado por decreto assinado pelo presidente Jair Bolsonaro no último dia 12, pode facilitar ocorrências como desmoronamentos e degradação nessas áreas, segundo especialistas ouvidos pela CNN.
O principal ponto de atenção do decreto, segundo os autoridades da área, é o que dispõe que empreendimentos de utilidade pública, como mineração e construção de rodovias, possam afetar cavernas classificadas como de relevância máxima, antes preservadas dessas atividades.
“Cavernas que não estão protegidas por lei, que não estão inseridas em unidades de conservação, mas estão impedindo legalmente o empreendimento, agora serão afetadas”, diz Roberto Cassimiro, geólogo e presidente da Sociedade Brasileira de Espeleologia (SBE), que é dedicada ao estudo de formações geológicas subterrâneas.
Essas cavernas, como explicam os ambientalistas, alimentam ou preservam cursos subterrâneos de água, guardam animais exclusivos e podem apresentar grande relevância paleontológica e arqueológica, com depósitos raros de materiais de interesses dessas áreas de estudo.
Um trabalho de mineração que seja definido como de utilidade pública, a partir do que permite o novo decreto, poderá impactar essas atividades.
O Instituto Brasileiro de Mineração (IBRAM), que reúne algumas das empresas do setor, vê o decreto como “uma modernização da legislação sobre cavidades no país”, mencionado “avanços científicos e tecnológicos observados na área nos últimos anos”, que permitem o avanço na exploração dessas áreas.
Segundo comunicado da associação, o texto “tem o potencial de destravar investimentos em projetos estruturantes de diversas áreas, como rodovias, ferrovias, linhas de transmissão, hidrelétricas, hidrovias, mineração e atividades petrolíferas, que vão ajudar o país a reencontrar o caminho do desenvolvimento econômico em harmonia com a preservação do patrimônio espeleológico nacional.
Abertura e manutenção de estradas
Outra possibilidade é que rodovias passem a ser construídas sobre ou próximas a cavernas de relevância máxima, o que pode colocar as formações em risco.
Antes do decreto, se fosse comprovada por meio de estudos a relevância máxima da caverna, uma rodovia que estivesse projetada na região deveria desviar a rota, o que não será mais preciso, diz Cassimiro.
“Nenhuma entidade ou grupo de pesquisa foi consultada para a alteração da lei. Não somos contra o empreendedorismo, mas que seja feito de forma sustentável”, disse o presidente da SBE.
Uma das áreas que podem ser afetadas é a Toca da Boa Vista, a maior caverna do Hemisfério Sul, que fica na Bahia e tem cerca de 115 km de galerias. Com a alteração da lei, a região sobre a caverna poderá receber empreendimentos, diz Cassimiro.
O especialista afirma ainda que a caverna está numa área de conservação ambiental, cuja denominação não é suficiente para evitar o avanço de atividades econômicas potencialmente destrutivas, o que permitiria a interferência sobre a região.
Também na Bahia, o asfaltamento de uma rodovia pode causar danos irreparáveis ao maior lago subterrâneo do país, o Lago do Cruzeiro, com mais de 12 mil metros quadrados de superfície e largura média de 60 metros.
A estrada passa em cima da caverna e aumenta os riscos de desabamento se a pressão sobre a área for aumentada com a aplicação de asfalto e o aumento no fluxo de caminhões. Por isso, a SBE dá como proposta retirar o fluxo da região e movê-lo para o entorno, sem que tenha que passar sobre as galerias, ainda que o trajeto aumente de 10 a15 km.
“Com o novo decreto e a pavimentação asfáltica da BR-135 (onde está a caverna do Lago do Cruzeiro), no trecho de chão no município de São Desidério, Bahia, a região, que possui algumas cavernas de relevância máxima, poderá ser afetada”, alerta Cassimiro.
A gruta do Tamburiu-Unaí, no oeste de Minas Gerais, próxima ao Distrito Federal, é outra região que pode sofrer impactos da mudança na lei.
“Tem um empreendimento minerário que não avançou porque estudos geofísicos comprovaram que as detonações poderiam afetar a caverna. Agora, você pode afetar e não tem mais o mesmo rigor de lei”, explicou.
Além de empresas de mineração e construtoras, algumas empresas de bebida, que exploram reservas de água nessas cavernas e regiões próximas, podem ser beneficiadas pelo novo decreto.
Diante das mudanças, pode haver, além da perturbação da fauna e da flora local, a contaminação ou a seca de cursos de água e, até mesmo o colapso das estruturas, disse o especialista.
Ele entende a mudança como “um retrocesso sem precedentes na política ambiental, que afetará de forma irreversível o patrimônio espeleológico”.
O professor do Instituto de Energia e Ambiente da USP Pedro Côrtes diz que a flexibilização da legislação pode aumentar os acidentes nessas estruturas.
A desregulamentação pode favorecer o aumento do turismo em regiões delicadas caso haja a percepção das autoridades locais de que a visitação fomenta a economia local, e, por isso, é de interesse público, o que permitiria um aumento do fluxo de pessoas em regiões de risco.
“Sem dúvida, aumenta os riscos de desmoronamento à medida que aumenta o fluxo de pessoas, e nem sempre é feito o controle a esses acessos. Pessoas podem se aventurar ingenuamente imaginando que não há problema”, ressalta Cortês.
Para Marcus Nakagawa, professor da ESPM e especialista em sustentabilidade, “o risco de desabamento vai aumentar” se não houver um controle rígido das atividades nas regiões.
Ele ressalta ainda o perigo de interferências frequentes no habitat de espécies que são responsáveis pela disseminação de doenças, como os morcegos, que estão sendo relacionados à aparição de novas enfermidades, como a Covid-19.
“Há mais perigos que aspectos positivos nesse decreto”, diz Nakamura. “Não tendo investimento para equipes de controle e de auditoria, os riscos aumentam. E por interesses que são às vezes somente comerciais, há liberações de áreas sem que essas etapas sejam cumpridas”, diz Nakagawa.
Exploração sem destruição
A flexibilização da legislação ambiental tende a favorecer um grupo pequeno de empresas, segundo o Clayton Lino, presidente do Conselho Nacional na Reserva da Biosfera da Mata Atlântica, da Unesco, quando poderia haver outro tipo de ganho econômico nas regiões de cavernas de máxima relevância.
“As cavernas do Vale do Ribeira, a Caverna do Diabo, elas são exploradas economicamente, dão base econômica para uma região, e geram recursos para toda uma comunidade. Não se trata de economia versus conservação. Tem cavernas que guardam a água e são fundamentais principalmente por isso”, afirma.
Além disso, iniciativas nos setores de construção e mineração não precisam ser necessariamente degradantes ao ambiente. O instituto Reserva da Biosfera da Mata Atlântica mantém uma parceria de dez anos com a Votorantim Cimentos que conseguiu proteger centenas de cavernas em áreas de Mata Atlântica.
Segundo Clayton, que participou de algumas das iniciativas, os projetos não só diminuíram os riscos de degradação ambiental como reduziram custos da empresa relacionados com processos ambientais.
Na Espanha, onde a Votorantim também atua, uma gruta com fósseis de antepassados de ursos e seres humanos estava em risco por conta do trabalho de mineração da empresa. Com o trabalho de preservação, a gruta e seu patrimônio foram preservados, sem interditar o trabalho de mineração.
“Tinha um conflito enorme, mas a gruta foi protegida, é inclusive um atrativo importante para a economia da região”, explica Clayton.
No Brasil, a área de grutas em Sobradinho, perto de Brasília, onde também é feita mineração, passou por um estudo aprofundado, que identificou as cavernas da região e delimitou uma área de proteção.
“É importante até para a própria mineração. Porque, se depois é descoberta uma caverna, ela é embargada e tem um custo enorme para a empresa”, explica.
Fonte: CNN brasil
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